O falecimento, no passado dia 7 de Janeiro, de Mário Soares, em Lisboa, no Hospital da Cruz Vermelha,
onde estava internado desde 13 de Dezembro, motivou, como seria de
esperar, uma avalanche avassaladora de declarações, elogios e elegias,
homenagens, memórias, recordações, reminiscências e retrospectivas. Apesar de
nunca ter tido a oportunidade de o conhecer pessoalmente, ao contrário, por exemplo, do meu amigo Rui Paulo Almas, em 1991, enquanto membro da Direcção da Associação
Académica de Lisboa, o ex-secretário geral do PS e ex-primeiro-ministro não
deixou de ter impacto também na minha vida…
… E isso aconteceu na
qualidade de presidente da república. A eleição de 1986 representou para mim, e provavelmente para muitas outras pessoas, um importante ponto de viragem… porque começou
aí o meu afastamento em relação ao Partido Comunista Português, a que estava
ligado através da militância na Juventude Comunista Portuguesa: não compreendi
e não concordei com o apoio dado a Francisco Salgado Zenha, e dei o meu voto,
na primeira volta, a Maria de Lurdes Pintassilgo, ao contrário de vários
«camaradas» meus de então que, apesar de terem simpatia pela
ex-primeira-ministra, não deixaram de obedecer ao Comité Central… Pelo que, na
segunda volta, me custou muito menos votar no tão vilipendiado «Bochechas»,
contra Diogo Freitas do Amaral. Um acto tão simples que, porém, foi como que um
respirar de alívio, um «fazer as pazes»: o triunfo do marido de Maria Barroso –
e é sempre de lembrar esta mulher notável, que faleceu em 2015 – constituiu como
que um momento de distensão num país que, nos 12 anos anteriores, desde 25 de
Abril de 1974, vinha acumulando antipatias e confrontos, uns mais graves do que
outros. A campanha eleitoral foi empolgante, até excitante, como não acontecera
antes e não voltou a acontecer depois.
A seguir a tomar posse,
Mário Soares comportou-se no entanto de forma exemplar, diria que quase irrepreensível
– é verdade que do Palácio de Belém foram lançadas regularmente algumas
«farpas» a Aníbal Cavaco Silva, o que a mim não causava desagrado, pois ontem
não tinha e hoje não tenho qualquer respeito pelo boliqueimense, que nunca
recebeu o meu voto, nem como candidato a primeiro-ministro, nem como candidato a
presidente da república: a actuação de «Gigi» (a alcunha de infância revelada
por Mário Moniz Pereira) foi caracterizada por uma considerável abrangência,
política, social e cultural; as suas viagens por Portugal, várias vezes sob a
forma de – inovadoras - «presidências abertas», eram invariavelmente ocasiões
de confraternização e mesmo de alegria popular; as viagens ao estrangeiro contribuíram
decisivamente para começar a desvanecer a imagem do nosso país como um local
atrasado, empoeirado, saudosista e soturno, e a integração europeia não impediu
a (re)descoberta de outras conexões geográficas e geoestratégicas, delas se
destacando a que resultou de uma memorável visita à Índia – surgiu mesmo a anedota sobre qual era
a diferença entre Deus e Soares… um estava em todo o lado e o outro já lá tinha
estado!
Na (re)eleição seguinte,
ele voltou a vencer, desta vez facilmente, contra Basílio Horta. Não precisava
do meu voto, mas eu entendi que ele o merecia – foi a minha forma de lhe dizer
«obrigado», de agradecer (antecipadamente) a um republicano, socialista e laico me ter ajudado a
tornar-me (ou a assumir-me como) um monárquico, conservador e cristão. Nunca me arrependi das duas vezes que desenhei um «x» à frente da sua
fotografia – ao contrário do que aconteceu (por uma vez) com o seu sucessor. E é
por isso que hoje, em que foi sepultado após um funeral de Estado, câmara ardente
no Mosteiro dos Jerónimos – onde em 1985 assinou a adesão de Portugal à Comunidade
Económica Europeia – e três dias de luto oficial, prefiro, não tanto esquecer, mas não evocar os aspectos menos agradáveis do seu percurso, desde a sua participação na (desastrada) descolonização à sua terceira (e fracassada) candidatura presidencial
em 2006, passando pelas revelações de Rui Mateus, a defesa que fez de José Sócrates e os cada vez mais infelizes (para não usar uma expressão
mais desagradável) artigos de opinião no Diário de Notícias. Prefiro
homenagear o opositor de António de Oliveira Salazar, o apoiante de Humberto
Delgado, o discípulo de Agostinho da Silva. (Também no MILhafre.)
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