Uma vez mais, escrevo sobre Mariano Martín
Rodríguez, espanhol, tradutor, filólogo, investigador em literatura com
«especialização» em ficção cientifica e fantástico, e, neste género, com
particular atenção aos autores de línguas latinas, contemporâneos ou nem tanto.
Com ele primeiro estabeleci contacto em 2013 –
na verdade, ele é que me contactou, por correio electrónico – e no ano seguinte
eu e outras figuras da FC & F nacional conhecemo-lo pessoalmente aquando de
uma visita dele a Lisboa. Em
Janeiro último divulguei novamente o seu trabalho, mais concretamente
traduções e análises de textos ais ou menos conhecidos de Teófilo Braga, Raul
Brandão e Eça de Queiroz…
… E agora o motivo para o mencionar volta a
ser, como há oito anos, o meu livro «Visões» e, mais precisamente, um dos
contos que o integra, «Decreto-Lei Nº 54»: ambos foram citados – e divulgo-o
com «algum» atraso, pelo que me «penitencio» ;-) – por Mariano Martín
Rodríguez no seu artigo «Discurso
prescritivo, ficção literária e cacotopia – “A Hora da Verdade” de Santiago
Eximeno, no seu contexto genérico», publicado em 2015 no Nº 24 da revista
(da Associação Espanhola de Semiótica) Signa. Na página 429 pode ler-se: «Todos
os textos prescritivos fictícios recentes de que temos notícia se podem
classificar na ampla categoría da literatura projectiva, salvo talvez o
intitulado “DecretoLei n.º 54” (en Visões, 2003), de Octávio dos Santos, em que
um Estado não localizado geográfica nem cronologicamente e implicitamente
cacotópico cria um imaginário “Instituto de Apoio ao Suicídio” (Santos 2003:
53) con matizes sarcásticas e inclusivamente absurdas.» O certo é que, desde que
soube da existência de MMR e dos estudos que desenvolve, passei a estar (ainda
mais) atento a qualquer exemplo de fictoprescrição (já tinha, mesmo que
inconscientemente, uma noção do que era antes de apreender o termo) que
eventualmente encontre. E, no período de um ano, encontrei dois exemplos, ambos
não em livros ou em revistas literárias mas sim, curiosamente, em blogs,
portugueses, de âmbito abrangente e que não costumam ter a FC & F como
tema.
Um é de Abril deste ano e está no Blasfémias.
Escrito por Vítor Cunha, intitula-se «Dizem que é o futuro»: «Extracto do
Despacho nº 1/2021 da República Portuguesa dos Bananas. A crise demográfica que
vivemos apresenta-se como um problema sério, quer para a sobrevivência da
cultura de vítima que cultivamos desde pelo menos o Marquês de Pombal, quer
para a sustentabilidade da segurança social num ambiente de pandemias
sucessivas em que importa reforçar o sistema hospitalar com algumas cenas importantes,
como ventiladores encaixotados. (…) 3 – É decretada a requisição temporária,
por motivos de urgência e interesse público e nacional, (d)a totalidade dos
contribuintes dependentes do sexo feminino, género indiferente, com peso entre
45 e 65 kg. 4 – Todas (e todos) serão sujeitos a teste de verificação de
virgindade, sendo aptas (e aptos) para o serviço de repovoação de contribuintes
todas (e todos) aquelas (e aqueles) que não apresentarem mácula indicadora de
violação do dever geral de confinamento. 5 – A requisição é válida enquanto a
declaração de situação de calamidade demográfica for aplicável ao território
nacional. 6 – Compete aos contribuintes que mantêm estas (e estes) virgens
assegurar a sua alimentação durante o período de salvação nacional. Roupa não é
necessária, que até está quentinho. 7 – A cada virgem será cobrada uma taxa
pelo privilégio de contribuir para a causa nacional.»
O outro é de Maio do ano passado e está no
Corta-Fitas – mas só o início, porque a
versão integral está no Observador. Escrito por José Mendonça da Cruz,
intitula-se «Regulamento nacional e socialista para o usufruto das praias»: «As
praias marítimas e fluviais são parcelas valiosas do património comum, pelo que
a sua fruição não deve ser deixada ao capricho privado e às forças selvagens do
mercado, antes deve obedecer a regras determinadas pelo poder político
socialmente legitimado e segundo políticas de garantia de uma praia para as
pessoas. É no pleno entendimento destes princípios e a fim de assegurar a boa
utilização balnear e uma gestão adequada dos tempos livres por parte dos
cidadãos que se determina o seguinte…» Deste dei conhecimento a Mariano Martín
Rodríguez em mensagem que lhe enviei no mesmo dia da publicação do post de
JMC, e na qual, depois de expressar votos de que ele estivesse «bem, seguro, a
salvo deste vírus, desta pandemia que parece ter tornado as nossas vidas
”normais” em cenários de autêntica distopia», lhe revelei o motivo do contacto:
«ter encontrado o que se me afigura ser mais um exemplo de um tema muito
interessante que o Mariano estudou, a “fictoprescrição”. Ao contrário do meu
“Decreto-Lei Nº 54”, o texto de que lhe deixo a hiperligação em baixo não
é um conto, não se assume como uma obra literária, mas é sim um artigo de
opinião marcadamente satírico, e em que o aparente exagero não estará tão
distante do que várias autoridades anunciaram que vão talvez fazer.» MMR
respondeu-me afirmando: «Com efeito, o texto enviado não é ficcional, e temo
que prontamente será legislação verdadeira, considerando o prazer que têm os
nossos governantes sabendo que o medo do lobo faz com que renunciemos como
ovelhas aos nossos direitos e liberdade, de maneira que podem levar-nos ao
matadouro da ruína económica sem que nos queixemos.» Difícil não lhe dar razão
atendendo ao que aconteceu nos 12 meses que entretanto decorreram. (Também no Simetria.)