(Adenda - A versão digital foi hoje, 8 de Setembro de 2022, alterada conforme exactamente o meu original. Pode ler-se aqui.)
(Esclarecimento prévio - O artigo que em baixo se transcreve foi publicado hoje na edição em papel e no sítio da Internet de um jornal diário português... mas não exactamente como a seguir se pode ler. Na verdade, o texto foi «convertido» segundo o AO90 obviamente contra a minha vontade, e pedidos repetidos no sentido de a versão digital ser alterada conforme o meu original não foram atendidos - até ao momento em que escrevo e publico este post.)
O Brasil celebra
hoje, 7 de Setembro de 2022, 200 anos de independência. É uma data muito
importante, realmente histórica, pela qual Portugal é o primeiro país a dar os
parabéns e a desejar «feliz aniversário». Ao país irmão? Não, ao país filho.
Sim, porque o Brasil é uma completa, total, criação de Portugal, que foi tanto
«pai» como «mãe» entre 1500 e 1822...
... Período
durante o qual sucessivas gerações de portugueses, cujo maior representante,
símbolo, terá sido o Padre António Vieira, trabalharam para fazer da Terra de
Vera Cruz a mais bela, a mais rica, quiçá perfeita, nação do planeta. Alargaram
o território para além do Tratado de Tordesilhas e assim conquistaram
praticamente todo o Amazonas, floresta e rio. Aos povos nativos juntaram
europeus e africanos, criando condições para uma autêntica, e profícua,
miscigenação. Deste lado do Atlântico levaram inclusivamente pedras com que se
construíram fortalezas e igrejas. Providenciaram uma
língua que constituiria o principal suporte da identidade e da unidade
nacionais. E, algo de incrível nunca acontecido, visto, antes nem depois,
fizeram da colónia o centro do império, Rio de Janeiro a substituir Lisboa como
capital e metrópole, e a seguir permitiram que a família real portuguesa se
tornasse também a brasileira, com o «Grito do Ipiranga» do herdeiro do trono a
anunciar o «corte» do «cordão umbilical». Que se fez sem revolução, sem guerra,
assim possibilitando à nova nação iniciar o seu próprio caminho sem drama, sem
tragédia. Os brasileiros teriam preferido que tivesse acontecido o mesmo que nas
independências dos Estados Unidos e da Argélia, marcadas por confrontos longos e
sangrentos com, respectivamente, a Grã-Bretanha e a França? Sim, não se duvide:
tudo o que de bom o Brasil teve e tem deve a Portugal. Pelo que não se
compreende e não se aceita que, ainda hoje, tantos brasileiros, desde cidadãos
mais ou menos anónimos a figuras públicas mais ou menos conceituadas, insistam
no insulto de que os problemas que a sua pátria sofre(u) sejam culpa de
Portugal. Tanta estupidez, tamanha falta de respeito, tal demonstração de
ignorância, imaturidade e ingratidão, devem ser condenadas sem hesitação e
sempre que se manifestem.
Nós deixámos de ser responsáveis por eles
desde 1822, directamente, e desde 1889, indirectamente, quando D. Pedro II,
após (e por causa de) abolir a escravatura, foi deposto enquanto chefe de
Estado, e com ele a monarquia brasileira. Na verdade, os dois países foram, e
são, prejudicados por repúblicas, ambas instauradas por golpistas fanáticos e
minoritários, que não cumpriram plenamente o que prometeram, ou seja, ordem e
progresso. Uma das áreas em que a desordem e o retrocesso mais se fizeram, e
fazem, sentir é a da ortografia. As repúblicas de ambos os lados do Atlântico
são reincidentes em obsessivas e absurdas «reformas» e (des)acordos quanto à
forma de escrever, iniciativas que desvalorizam, enfraquecem, um vital
instrumento de comunicação, com (más) consequências visíveis, inegáveis, nas
culturas de ambas as nações. O maior extremismo, e até terrorismo, neste âmbito
veio do Brasil em 1943, quando a ditadura de Getúlio Vargas consagrou um
radical e generalizado corte de consoantes «mudas», ceifando as raízes latinas,
que cobardemente as mais altas (ou baixas?) instâncias oficiais portuguesas
viriam a «adotar» através do AO90. Os dois países são, neste aspecto, duas
insólitas e ridículas, risíveis, excepções em todo o mundo civilizado, duas
«repúblicas das bananas» típicas do Terceiro Mundo, terrenos férteis para o
surgimento de «vanguardistas» patéticos que não hesitam em sacrificar os
verdadeiros interesses, a estabilidade e o bem-estar da maioria dos seus
compatriotas em favor de um falso progresso, de utopias que acabam por se
revelar, inevitavelmente, como distopias. E tanto deste lado do Atlântico como
do outro a «justificação» tem sido a mesma: simplificar e «facilitar» a
aprendizagem; porém, tais objectivos não - nunca - foram atingidos, como o
atestam os crónicos e elevados índices de analfabetismo e de iliteracia nas
duas nações.
Há 100 anos, em 1922, a celebração do
primeiro centenário da independência do Brasil teve como maiores protagonistas
dois portugueses: Carlos Gago Coutinho e Artur Sacadura Cabral, que realizaram
a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Um século depois, o maior
protagonista é outro português que também viajou – na verdade, apenas uma parte
dele – de avião a partir da Europa: o coração de D. Pedro I (para nós o
quarto), por ele doado à cidade do Porto, regressou temporariamente à segunda
pátria que igualmente tanto amou. Se o dele já não, os corações de muitos (acredito
que a maioria dos) portugueses ainda batem pelo Brasil, apesar de tudo
orgulhosos, como um pai, por tudo o que de bom o filho conseguiu. Todavia, e tal
como numa relação familiar, é indispensável haver respeito mútuo, e, nesse
aspecto, muito há ainda a fazer. Tal como entre pessoas, também entre nações
não deve existir dominação e subordinação resultantes de uma disparidade de
números – nos quilómetros quadrados de área, no número de habitantes, no poder
económico. A reversão de papéis expressa numa eventual reconversão de Portugal
como colónia contemporânea do Brasil, que muitos cá parecem encarar com
resignação, não é uma solução para um problema que, de facto, não existe nem
nunca existiu. Porque nós não temos presentemente de pedir perdão seja pelo que
for. Esperamos, sim, pelo contrário, ouvir um «muito obrigado». (Também no MILhafre. Referência e transcrição no Apartado 53 e n'O Lugar da Língua Portuguesa.)