sábado, abril 16, 2005

Obras: "Caminhos de ferro"

Era o fim do dia.
O sol começava a esconder-se no horizonte e anunciava o crepúsculo, a saída dos locais de trabalho e o início do caminho de regresso a casa. As ruas enchiam-se de pessoas apressadas, que se dirigiam para os seus carros ou para os transportes públicos, para o barco, para o autocarro, para o metropolitano... e para o comboio.
Na estação ferroviária, homens e mulheres vão chegando a pouco e pouco. Alguns conseguem sentar-se nos poucos bancos, mas a maior parte tem de esperar em pé. Muitos lêem jornais e revistas, comem alguma coisa que trouxeram ou compraram, porque a hora de jantar está próxima e a fome já aperta.
Aqui e ali formam-se pequenos grupos de duas, três, quatro, cinco pessoas, amigos e conhecidos, colegas de trabalho e vizinhos, que discutem o tempo, a última jornada do campeonato de futebol, a remodelação do governo e o mais recente escândalo sexual.
Então, uma voz pelo altifalante anuncia:
- O comboio que vai dar entrada na linha número um tem paragem prevista em todas as estações e apeadeiros. Avisamos as senhoras e os senhores passageiros que não nos responsabilizamos por eventuais danos, físicos e psicológicos, que eventualmente venham a sofrer. Informamos, uma vez mais, que correm perigo de vida se entrarem neste comboio.
Este aviso, que por ser repetido sempre antes da chegada de qualquer comboio já se tornara banal e monótono, funciona também como o sinal para todos os passageiros prepararem os seus equipamentos de viagem: capacetes ou máscaras especiais de protecção facial, coletes à prova de bala e blusões reforçados, e diversas armas, como bastões, punhais e até mesmo pistolas. Um a um, todos ficam prontos.
O combóio pára na estação, e como sempre a esta hora, vem cheio. As portas abrem-se, e a grande batalha começa.
Cenas de uma violência indescritível desenrolam-se na plataforma, junto de todas as portas das carruagens. Os cidadãos comuns e pacatos transformaram-se em guerreiros sanguinários que lutarão, até à morte se for preciso, por um lugar no comboio que os leve a casa. Neste momento nada é mais importante. E por isso empurram, batem, ferem, matam. As mãos dão bofetadas e murros, brandem punhais e disparam pistolas. O pandemónio é total. Gritos de raiva e de dor rasgam a noite, enquanto o sangue se espalha e acumula no cimento do chão e nos vidros das janelas.
Finalmente, depois de dez minutos de tumulto violentíssimo, a situação começa a definir-se. Os mais fortes, ou talvez apenas os mais afortunados, conseguiram entrar no comboio e ocupar os poucos lugares que restavam. Estão exaustos, sujos, as roupas rasgadas, quase todos feridos, alguns com gravidade. Gemem e choram por causa de mais algumas fracturas e hemorragias que os seus já tão martirizados corpos vão ter de sofrer. Porém, os que entraram estão de certeza muito melhores do que os outros.
À medida que o comboio, lentamente, reinicia a sua marcha, vêem-se os cadáveres dos infelizes perdedores do dia. As janelas das carruagens são um grande ecrã onde passa um filme de terror verdadeiro. Entretanto, as brigadas de limpeza da empresa ferroviária estão já em acção, removendo os corpos e limpando e desinfectando o pavimento. Há que desocupar e preparar o espaço para a próxima carnificina, que terá ali lugar quinze minutos depois.
Todavia, não é só naquela estação. A loucura assassina ataca em cada paragem, e as imagens de violência e de morte repetem-se sucessivamente. Enquanto ainda existem lugares no comboio, são apenas as pessoas de fora que entram em luta. Mas quando já não é possível comprimir mais ninguém dentro das carruagens, quando as pessoas vão já tão apertadas que quase não é possível respirar, são estas que regressam ao combate, defendendo com ferocidade os seus poucos centímetros sagrados de espaço. Entre as carruagens sobrelotadas e as plataformas apinhadas há troca de tiros e de insultos, estes, provavelmente, em número inferior àqueles.
Depois da lotação ficar completamente esgotada, o comboio já não pára nas outras estações onde há ainda passageiros a quererem entrar, verdadeiros loucos com instintos suicidas. A próxima paragem será feita quando alguém quiser sair. E, aí, isso quererá dizer que haverá mais violência.
No comboio, um lugar é também um motivo para matar e morrer.
O interior não é um local mais seguro do que o exterior. É preciso estar sempre atento, pronto para reagir, no caso de algum ocupante que ainda não esteja imobilizado pela compressão ou pela exaustão pretender roubar, agredir ou violar. Pequenas escaramuças rebentam regularmente dentro do comboio, formas agradáveis de passar o tempo até se enfrentarem as próximas ameaças.
No comboio há sempre um perigo desconhecido que espera por si.
Seria bom que a morte só se aproximasse quando o comboio parasse. Infelizmente, ela espreita até mesmo a alta velocidade. Em determinados pontos do percurso, que os passageiros veteranos, ou seja, os sobreviventes e reincidentes, já conhecem, são sempre de esperar ataques por parte dos «Filhos do Inferno». Este é o nome que se dá às crianças marginais e delinquentes, que habitam nos bairros de lata instalados ao longo da linha, e que atacam os comboios para se divertirem. E hoje não é dia de folga para eles.
O comboio é atacado, primeiro, por uma chuva de pedras, que partem os poucos vidros que ainda restavam. Em seguida atiram garrafas em chamas, autênticos «cocktails Molotov», que semeiam o pânico entre os passageiros ainda acordados e conscientes e que se podem mover. Vários ficam em chamas antes de se conseguir atirar de volta os objectos incendiários pelas janelas, e essas tochas humanas são por sua vez atiradas lá para fora, iluminando, com os seus corpos, este normal percurso suburbano e sub-humano.
As crianças traquinas não desistem. E insistem, desta vez com metralhadoras. Os combatentes das carruagens ripostam com todas as armas que ainda dispõem, e as baixas vão aumentando de ambos os lados. Alguns «filhotes» mais ousados saltam de pontes e viadutos para o tecto das carruagens, e tentam entrar nelas aproveitando o efeito de surpresa. Sem grandes resultados: praticamente todos são repelidos e caem, sendo vários trucidados, decepados e decapitados pelas rodas do comboio.
Porém, os sobressaltos não acabaram.
A meio do percurso o comboio pára, mas não numa estação. Está-se numa terra de ninguém, um descampado, onde as luzes mais próximas estão a vários quilómetros de distância. Os passageiros receiam o pior: uma emboscada preparada por um bando de cobradores renegados, daqueles que enlouqueceram devido ao stress terrível da profissão e atacam os passageiros com os seus alicates.
Depois de alguns minutos de uma expectativa angustiada, o comboio recomeça a mover-se e entra num desvio. Os passageiros suspiram de alívio: o comboio parara simplesmente para dar passagem a outro comboio, este de mercadorias. Ninguém protesta. Afinal, prioridades são prioridades. Não há dúvidas sobre o que é mais importante.
Duas horas foram precisas para se percorrer trinta quilómetros. Um a um, o comboio dos malditos fica vazio da sua carga repelente. As carruagens imundas, agora desertas, exalam um odor insuportável a morte.
Estes caminhos são de ferro. O ferro dos carris e também o ferro das lâminas e das balas.
As pessoas, que antes de entrarem no comboio eram cidadãos bem vestidos e compostos, são agora pouco mais do que vagabundos esfarrapados, fantasmas que cambaleiam e gemem a cada passo que dão.
Habitualmente, eles arrastam-se para as suas casas logo depois de descerem. Mas hoje não. Há outra coisa que têm de fazer antes.
Em cada estação do país forma-se um cortejo de miseráveis que fazem fila até à bilheteira.
Por ser o último dia do mês, é também o dia de comprar a senha do passe.

Conto incluído no meu livro «Visões».

Sem comentários: