Um dos maiores problemas, se não o maior, da actividade literária e livreira em Portugal está em ainda não se considerar devidamente o livro como um produto, e, logo, como algo sujeito às regras do mercado. Modificar o modo como se encara e se trabalha o sector implica melhorar a fase final do processo, isto é, a distribuição e a promoção, mas não só: são necessárias transformações na própria escrita, nos objectivos e nas técnicas de elaboração de um livro.
Com o advento das novas tecnologias da informação e da comunicação, do desenvolvimento do computador, dos sistemas multimédia, da Internet, do e-book, muitas foram as vozes a profetizarem o desaparecimento do livro, ou, pelo menos, a sua inevitável subalternização. É quase impossível que isso aconteça: a História ensina-nos que, normalmente, nenhum novo meio de comunicação ou de expressão artística elimina o antecedente; o cinema não acabou com o teatro, a televisão não acabou com o cinema nem com a rádio, esta não acabou com os jornais; e o livro na sua «forma em carbono» tem uma autonomia e uma durabilidade que a sua «versão electrónica» (ainda) não tem.
A invenção e o desenvolvimento da imprensa permitiram a expansão da boa literatura, mas também o alastramento de vários tipos de lixo literário. Antes, quando um livro era um bem raro e precioso, havia um cuidado muito maior com aquilo que se escrevia. Todos os livros, ou quase, eram também grandes livros, pela dimensão, pela valia artística intrínseca, ou ambas. Aliás, não é por acaso que quanto mais se avança no tempo menos existem livros importantes, obras de referência, clássicos indiscutíveis e de especial significado para uma ou mais gerações.
Actualmente, os livros tendem a submeter-se à realidade em vez de a tentarem dominar – e isto acontece principalmente na ficção. Muitos escritores parecem fazer várias vezes o mesmo livro em lugar de fazerem livros diferentes. A poesia, em particular, só é reconhecida e publicada pelos «entendidos» se for complexa, hermética, ilegível; um «verdadeiro» poeta quase que tem de criar uma nova linguagem de cada vez que escreve um livro, em vez de tentar transmitir as suas ideias e sentimentos, de uma forma clara e simples, ao maior número possível de pessoas - os que fazem isso só escrevem «lugares comuns».
Neste momento, no século XXI, não há lugar para muitos (ou mesmo todos) dos «ismos» que têm marcado e dominado a história da literatura. Romantismo, realismo, neo-realismo, naturalismo, surrealismo, existencialismo, modernismo, pós-modernismo, já não são suficientes para reflectir as novas realidades e actuar sobre elas. A escolher um nome, um «ismo» para uma nova corrente literária, adaptada aos novos tempos e às suas características, ele só poderia ser um: «sintetismo». Porque os livros têm que incidir sinteticamente sobre o que é essencial.
A literatura deveria contribuir para a procura, para a construção de uma unidade, de um equilíbrio, de uma síntese, não só da própria obra mas também das pessoas às quais ela se destina. Ao invés, grande parte da literatura deste século é caracterizada pela fragmentação, pela dispersão, pela confusão artística e mental. Este estado de coisas é o resultado do mal estar característico do século passado, pródigo em atrocidades de toda a espécie, mas também, mais subtilmente e também por causa disso, do domínio e da influência que a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise e todas as correntes e subespécies que delas derivaram têm exercido na sociedade e na cultura. O «psi» na literatura privilegia a desarticulação das ideias e das frases, a exposição das fraquezas e dos traumas, aspectos que as duas guerras mundiais só vieram agravar. A literatura teria necessariamente que se ressentir do (mau) ambiente que a rodeava. A fragmentação é, no entanto, uma característica inexorável da literatura, tanto da antiga como da nova. A diferença está em considerá-la ou como ponto de partida ou como ponto de chegada. Na nova literatura ela é, deve ser, sempre um ponto de partida para algo mais completo e superior - um sentido último, uma mensagem derradeira, um sentimento dominante, uma imagem de síntese.
Escrever na «Era da Internet» – e, muitas vezes, para a Internet – implica uma certa disciplina. Mas é a obra, o livro, que é mais importante, e não o autor. Tem que ser útil, relevante, no seu tema e/ou na maneira como o trata. O livro deve ser escrito, construído, trabalhado, fortalecido de uma maneira tal que possa sobreviver no futuro sem ser preciso recorrer à fama ou ao talento da pessoa que o criou. Todos os livros devem constituir como que unidades independentes, ou pelo menos autónomas; devem constituir como que «organismos vivos»; devem conquistar os públicos por si próprios; devem, na medida do possível, fornecer respostas, soluções, exemplos, modelos de conduta, para muitos problemas e situações. A nova literatura, a verdadeira literatura, deve ser uma força ao serviço da ordem e contra o caos, ao serviço da vida e contra a morte.
Os livros construídos deste modo, apesar de coerentes e equilibrados interiormente, dificilmente serão enquadráveis, integráveis em categorias e colecções «normais» das editoras actuais. A nova literatura é, quase por definição, híbrida: abrange diversos assuntos e contextos, utiliza vários estilos e métodos... e pode ter como suportes, além do papel, a electricidade. Por isso, a nova literatura, consequência, e também causa, deste (admirável?) mundo novo das novas tecnologias da informação e da comunicação, requer novas políticas editoriais, novos editores, e, eventualmente, novas editoras.
Artigo publicado na revista Tempo, Nº 79, 2005/5/25.
Com o advento das novas tecnologias da informação e da comunicação, do desenvolvimento do computador, dos sistemas multimédia, da Internet, do e-book, muitas foram as vozes a profetizarem o desaparecimento do livro, ou, pelo menos, a sua inevitável subalternização. É quase impossível que isso aconteça: a História ensina-nos que, normalmente, nenhum novo meio de comunicação ou de expressão artística elimina o antecedente; o cinema não acabou com o teatro, a televisão não acabou com o cinema nem com a rádio, esta não acabou com os jornais; e o livro na sua «forma em carbono» tem uma autonomia e uma durabilidade que a sua «versão electrónica» (ainda) não tem.
A invenção e o desenvolvimento da imprensa permitiram a expansão da boa literatura, mas também o alastramento de vários tipos de lixo literário. Antes, quando um livro era um bem raro e precioso, havia um cuidado muito maior com aquilo que se escrevia. Todos os livros, ou quase, eram também grandes livros, pela dimensão, pela valia artística intrínseca, ou ambas. Aliás, não é por acaso que quanto mais se avança no tempo menos existem livros importantes, obras de referência, clássicos indiscutíveis e de especial significado para uma ou mais gerações.
Actualmente, os livros tendem a submeter-se à realidade em vez de a tentarem dominar – e isto acontece principalmente na ficção. Muitos escritores parecem fazer várias vezes o mesmo livro em lugar de fazerem livros diferentes. A poesia, em particular, só é reconhecida e publicada pelos «entendidos» se for complexa, hermética, ilegível; um «verdadeiro» poeta quase que tem de criar uma nova linguagem de cada vez que escreve um livro, em vez de tentar transmitir as suas ideias e sentimentos, de uma forma clara e simples, ao maior número possível de pessoas - os que fazem isso só escrevem «lugares comuns».
Neste momento, no século XXI, não há lugar para muitos (ou mesmo todos) dos «ismos» que têm marcado e dominado a história da literatura. Romantismo, realismo, neo-realismo, naturalismo, surrealismo, existencialismo, modernismo, pós-modernismo, já não são suficientes para reflectir as novas realidades e actuar sobre elas. A escolher um nome, um «ismo» para uma nova corrente literária, adaptada aos novos tempos e às suas características, ele só poderia ser um: «sintetismo». Porque os livros têm que incidir sinteticamente sobre o que é essencial.
A literatura deveria contribuir para a procura, para a construção de uma unidade, de um equilíbrio, de uma síntese, não só da própria obra mas também das pessoas às quais ela se destina. Ao invés, grande parte da literatura deste século é caracterizada pela fragmentação, pela dispersão, pela confusão artística e mental. Este estado de coisas é o resultado do mal estar característico do século passado, pródigo em atrocidades de toda a espécie, mas também, mais subtilmente e também por causa disso, do domínio e da influência que a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise e todas as correntes e subespécies que delas derivaram têm exercido na sociedade e na cultura. O «psi» na literatura privilegia a desarticulação das ideias e das frases, a exposição das fraquezas e dos traumas, aspectos que as duas guerras mundiais só vieram agravar. A literatura teria necessariamente que se ressentir do (mau) ambiente que a rodeava. A fragmentação é, no entanto, uma característica inexorável da literatura, tanto da antiga como da nova. A diferença está em considerá-la ou como ponto de partida ou como ponto de chegada. Na nova literatura ela é, deve ser, sempre um ponto de partida para algo mais completo e superior - um sentido último, uma mensagem derradeira, um sentimento dominante, uma imagem de síntese.
Escrever na «Era da Internet» – e, muitas vezes, para a Internet – implica uma certa disciplina. Mas é a obra, o livro, que é mais importante, e não o autor. Tem que ser útil, relevante, no seu tema e/ou na maneira como o trata. O livro deve ser escrito, construído, trabalhado, fortalecido de uma maneira tal que possa sobreviver no futuro sem ser preciso recorrer à fama ou ao talento da pessoa que o criou. Todos os livros devem constituir como que unidades independentes, ou pelo menos autónomas; devem constituir como que «organismos vivos»; devem conquistar os públicos por si próprios; devem, na medida do possível, fornecer respostas, soluções, exemplos, modelos de conduta, para muitos problemas e situações. A nova literatura, a verdadeira literatura, deve ser uma força ao serviço da ordem e contra o caos, ao serviço da vida e contra a morte.
Os livros construídos deste modo, apesar de coerentes e equilibrados interiormente, dificilmente serão enquadráveis, integráveis em categorias e colecções «normais» das editoras actuais. A nova literatura é, quase por definição, híbrida: abrange diversos assuntos e contextos, utiliza vários estilos e métodos... e pode ter como suportes, além do papel, a electricidade. Por isso, a nova literatura, consequência, e também causa, deste (admirável?) mundo novo das novas tecnologias da informação e da comunicação, requer novas políticas editoriais, novos editores, e, eventualmente, novas editoras.
Artigo publicado na revista Tempo, Nº 79, 2005/5/25.
Sem comentários:
Enviar um comentário