(Adenda: texto aumentado - com novos segmentos a itálico - a 13 de Março de 2025.)
Hoje, 4 de Novembro de 2024, passam exactamente 40
anos desde a morte do meu pai, José Manuel Dias dos Santos. Um dos acontecimentos
mais marcantes – aliás, numa certa perspectiva, talvez mesmo o mais marcante –
da minha vida, pelo profundo impacto e pelas enormes consequências que nela
teve. Poder-se-á contrapor que o falecimento de um progenitor é algo de natural
e de previsível, para o qual devemos estar, mesmo que inconscientemente, sempre
preparados. Sim, sem dúvida; mas há que reconhecer também que esse cenário inevitável
toma contornos muito diferentes quando o funesto desaparecimento acontece
prematuramente, aos 45 anos de idade. Para melhor contextualizar a perda, eu
tinha 19 anos e o meu irmão 12.
Nestas quatro décadas que entretanto passaram nunca
deixei de me lembrar do, e de pensar no, meu pai constantemente. De duas formas,
ou em dois sentidos: por um lado, interrogando-me sobre o que ele acharia de
factos importantes que ocorreram em Portugal e no Mundo, e das figuras que os
protagonizaram; e, por outro lado, especulando sobre qual teria sido a própria evolução
pessoal dele, em especial nos aspectos ideológico e profissional. O meu pai, à
semelhança de outros, ficaria surpreendido pela ascensão à Presidência da
República de Mário Soares, primeiro, e de Cavaco Silva, depois, além de pelos
dez anos em que o ex-ministro das Finanças de Francisco Sá Carneiro foi
primeiro-ministro; teria ainda, acredito, testemunhado com expectativa a adesão
do nosso país à Comunidade Económica Europeia e as mudanças radicais que aquela
induziu; observado com entusiasmo a realização da Expo 98 e a concomitante renovação
urbana da zona oriental de Lisboa; assistido, entre espanto e terror, à queda
do Muro de Berlim, ao fim da União Soviética e aos ataques terroristas de 11 de
Setembro de 2001. A um nível individual prefiro imaginar que também se afastaria
progressivamente do Partido Comunista Português, em que ambos militámos (eu na
JCP), mas é provável que não tivesse ido tão longe quanto o filho mais velho,
que se tornou monárquico e de direita; utilizaria com progressiva desenvoltura as novas tecnologias, o computador pessoal e a Internet, o Multibanco e a Via Verde, os automóveis híbridos (mas talvez não os eléctricos); e não duvido de que, a dado momento,
ter-se-ia tornado empresário e lançado o seu próprio, bem sucedido, negócio, porque
espírito de iniciativa e competência técnica não lhe faltavam, de que é um
exemplo o ter sido o fundador principal da cooperativa de consumo UniPovo, em Alverca - outro, de quem era amigo, foi Josué Romão, que durante demasiados anos esteve preso no campo do Tarrafal.
Foi essa capacidade de trabalho que lhe permitiu superar uma infância e uma adolescência humildes, e alcançar uma situação financeira minimamente estável que lhe possibilitou constituir família. Todavia, o empenho no emprego nunca lhe tirou o interesse em aumentar o seu enriquecimento cultural nas horas nas horas (não necessariamente) vagas. Os seus gostos em literatura, música e cinema exerceram em mim uma grande influência. Admirador de Albert Camus, adquiriu vários livros do aclamado escritor francês, um dos quais - «A Queda» - é um dos (20) livros da minha vida; também o era de Ian Fleming e de Irving Wallace, autores também com vários volumes lá em casa; «My Sweet Lord», de George Harrison, era tocado constantemente no nosso gira-discos, o que incentivou, «recuando», à (re)descoberta dos Beatles; ao serviço da empresa em que exerceu funções de direcção deslocava-se com regularidade a Londres, de onde trouxe, a meu pedido, diversos discos - quatro deles, dos Doors, Joy Division, Talking Heads e Siouxsie & The Banshees, integram o meu «top 20» pessoal; levou-me a ver, no (depois desactivado) cinema Berna, «2001, uma Odisseia no Espaço», um dos (20) filmes da minha vida e factor decisivo na minha futura vocação literária. Nunca faltavam pretextos para falarmos das obras e dos artistas que mais nos impressionavam. No entanto, e infelizmente, o tempo para tal foi muito menor do que deveria ter sido.
Em retrospectiva, aquele ano de 1984 destaca-se como
memorável por diversos motivos, a maioria dos quais infelizes. Começou mal com a
morte igualmente precoce de José Carlos Ary dos Santos, que o meu pai conheceu
pessoalmente enquanto publicitário - e por isso ficámos com um exemplar autografado de «As Portas Que Abril Abriu» - e a quem por isso eu muito gostaria de ter
dado a ler os meus poemas. Continuou pior com o falecimento ainda mais precoce de Joaquim Agostinho, cujo cortejo fúnebre, que partiu da Basílica da Estrela
com destino a Torres Vedras, nós presenciámos no Largo do Rato, depois de
termos descido a Rua Rodrigo da Fonseca, vindos da empresa onde o meu pai
trabalhava, situada num edifício na esquina com a Avenida Joaquim António de
Aguiar – o mesmo a que eu voltaria, uma década depois, mas para um outro piso,
enquanto redactor da revista África Hoje. Mantendo-nos no desporto, o José
Manuel, tal como todos os seus compatriotas, exultou com a vitória – e respectiva
obtenção da medalha de ouro (a primeira de Portugal) – de Carlos Lopes na prova
da maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Um triunfo que mais ou menos
compensou a desilusão da derrota da selecção portuguesa de futebol face à sua
congénere gaulesa no campeonato da Europa daquele ano, realizado, precisamente,
em França. Como eu lamento que o meu pai não tenha tido a felicidade de
assistir à «desforra» em 2016 e se maravilhar com as proezas de Cristiano
Ronaldo, que nasceu no ano seguinte àquele em que ele pereceu...
... E que, tal como
Carlos Lopes e Joaquim Agostinho, está entre os atletas mais valorosos que
envergaram as cores do Sporting Clube de Portugal, de que ele era adepto - e em cujos campos de ténis foi apanha-bolas quando era criança. O que,
depois de se casar, resultou numa «solidão clubística»: rodeado de
benfiquistas, afirmava com bom humor ser o «Acácio Barreiros da (nossa) família».
E hoje, muitos anos depois, o que acontece neste âmbito? Decidi tornar-me adepto
do Sporting. Quem disse que não se pode mudar de clube, e numa idade já
«avançada»? Afinal, se mudei tanto a nível político, porque não poderia fazer o
mesmo a nível desportivo? E fi-lo não apenas por estar cansado, farto, da incompetência crónica e do fatalismo perene do suposto «glorioso»; também por
muito admirar Frederico Varandas e Rúben Amorim – este um conterrâneo, aliás. Mas,
principalmente, por o SCP ser uma das poucas (ou possivelmente a única?)
instituição de grande dimensão no país, pública ou privada, que não se submeteu
ao infame e ilegal «acordo ortográfico de 1990». Assim, actualmente sou eu que
de certo modo invoco o então deputado único da UDP. O que não é um problema. E,
enfim, o verde é também a minha cor, verdes são os meus (defeituosos) olhos, verde
de uma esperança que, porém, agora é para mim, enquanto adulto e por causa de
bastantes desilusões e de vários fracassos, bem menor do que quando eu era mais
jovem. Do que quando o meu pai era vivo. Do que quando, ainda distantes da tristeza, alguns momentos perfeitos aconteciam, como aquele no Verão de 1981, com nós os quatro no carro, e no rádio ouvimos «Love Plus One» dos Haircut 100, na estrada para o Algarve, algures entre Aljustrel e Castro Verde.
4 comentários:
Excelente artigo! Gostei muito de ler, com vários mistos de emoções. Emoção negativa e repreendedora em relação ao Sporting, só 😌
Excelente artigo. A forma como o Octávio entrelaça memórias pessoais com eventos históricos nos proporciona uma leitura envolvente e enriquecedora.
Obrigado, Cláudia... apesar das reservas quanto à preferência desportiva. ;-)
Obrigado, Mery.
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