Infelizmente, aconteceu: após vários anos de confrontos
e de diferendos que incluiram decisões em tribunais, os restos mortais de José
Maria Eça de Queiroz foram oficialmente transferidos, trasladados, para o
Panteão Nacional, em Lisboa, no passado dia 8 de Janeiro. Mas dificilmente a
controvérsia e o debate terão terminado.
Eu, que concebi e co-organizei congressos em 2019 e
em 2021 dedicados ao criador de «O Primo Basílio», «A Relíquia» e o «Os Maias»,
sinto-me com mais autoridade para criticar, para condenar, esta iniciativa:
para o Panteão, esse mórbido «depósito de celebridades» do regime, vai a minha
mais sonora... pateada. E o facto de terem coberto o caixão de Eça de Queiroz
com o «ignóbil trapo» (Fernando Pessoa o disse), estandarte de terroristas e de
assassinos, regicidas e criminosos, representou o pior numa cerimónia, e num
processo, já de si demasiado indignos. José Maria era monárquico,
anti-republicano; os seus filhos combateram, com armas, muito bem e
honrosamente, o regime ilegítimo saído do golpe de Estado de 5 de Outubro de
1910. Pelo que «embrulhá-lo» naquele «casulo» infame foi como cuspir em cima
dele e de todos os seus descendentes.
No seu blog Horas Extraordinárias Maria do Rosário Pedreira escreveu, em
tom fantasista, que Eça agora «poderá ter interessantíssimas conversas com
Sophia (de Mello Breyner Andresen) (...) apesar de para já estar sozinho numa
sala». Comentando no mesmo tom, eu diria que ele sem dúvida preferiria
permanecer no cemitério de Santa Cruz do Douro, onde não estava só pois
repousava ao lado da filha, com quem teria certamente diálogos mais
enternecedores. Aliás, o que mais espanta nesta anunciada e concretizada
profanação de sepultura é a deslealdade – para não usar uma palavra mais forte
começada por «t» - de alguns indivíduos e instituições em Baião, a começar por
José Luís Carneiro, socialista que foi presidente da câmara daquela vila,
ministro de António Costa e agora deputado, e a terminar na Fundação Eça de
Queiroz (esta, sim, «sempre a mexer», mas nem sempre no melhor sentido) e no
actual, imaturo, presidente daquela. Porquê tirar o autor de «A Cidade e as
Serras» de perto do local, de Tormes, que lhe inspirou a criação daquela obra?
O que poderá levar pessoas aparentemente sensatas a «darem tiros nos pés», se
não os seus próprios, então os da terra à qual, em princípio, deveriam maior
fidelidade? Apenas granjear alguns favores junto de pseudo-elitistas e
«burrocratas» instalados n'A Capital?
Enfim, porquê ficar por aqui? Porque não continuar a
roubar escritores aos locais em que têm as suas últimas (?), escolhidas,
moradas? Por exemplo, Fialho de Almeida a Cuba? Florbela Espanca a Vila Viçosa?
Camilo Castelo Branco – cujo bicentenário do nascimento se celebra neste ano de
2025 – ao Porto, apesar de, ele sim e curiosamente, ter nascido em Lisboa? A abusiva e ofensiva apropriação dos ossos de Eça de Queiroz constitui apenas mais uma ilustração,
mais uma confirmação, de uma das hipocrisias fundamentais da sociedade
portuguesa contemporânea, a que concerne à desigualdade entre o litoral e o
interior, à oposição entre núcleos urbanos e áreas rurais; que depois os
«suspeitos do costume» não venham queixar-se da falta de regionalização e do
centralismo olissiponense.